OPINIÃO
As lágrimas e as desculpas do papa não bastam
Tratar pedófilos travestidos de agentes de Deus com leniência equivale a fechar os olhos para apederejamentos de mulheres adúlteras. Por Alexandre Barros
Desde que explodiram a extensão e a profundidade dos escândalos causados pela divulgação pública dos casos de pedofilia praticados por padres encarregados de zelar pela salvação eterna das almas e pela retidão nesta vida dos católicos, o papa Bento XVI vem se esgueirando de providências concretas.
Fala por interpostas pessoas, diz que a Igreja se arrepende, chora, mas não faz o cabível e aceitável em sociedades modernas não teocráticas, nem católicas: dizer em alto e em bom tom que, além de pecadores, padres pedófilos são criminosos puníveis pelas leis seculares dos países em que cometeram seus crimes, e devem ser entregues à justiça secular.
O papa recusa-se a aceitar que não tem mais o poder temporal do passado e que os estados nacionais têm o direito de votar leis determinando que alguns comportamentos são criminosos e devem ser punidos pelas leis em vigor. Elas são para ser cumpridas sem distinção de cor, credo ou profissão. Crimes desse tipo não podem depender apenas de punições burocráticas internas.
Punições religiosas tinham sentido quando ser excomungado era uma grande desgraça para alguém. Como a maior parte das pessoas hoje é leiga nesse assunto, uma excomunhão e nada equivalem à mesma coisa. A excomunhão só valia quando as pessoas acreditavam que ela tinha alguma consequência: elas iam queimar no inferno por toda a eternidade.
Entregar a punição dos padres pedófilos à burocracia da Igreja equivale a deixar que parlamentares não punam (nem entreguem à punição pela justiça criminal) seus colegas corruptos e criminosos.
O conflito ciência versus Igreja já tem mais de 600 anos e, de lá para cá, muita gente deixou de acreditar no inferno. Católicos diversos passaram a interpretar os dez mandamentos com mais flexibilidade em suas vidas pessoais, sem prejuízo a terceiros e sem precisar temer a excomunhão, o inferno ou o purgatório.
Vivemos numa era hedonista. No máximo, a maior parte das pessoas acredita no céu porque é confortável. Muitos acreditam até num céu para seus bichos de estimação.
A confissão é um recurso relativamente fácil hoje em dia porque pouca gente acredita no inferno.
Lembro-me, até hoje, aterrorizado, do dia em que um padre negou-me absolvição aos 12 anos de idade. Eu havia me confessado num dia, cometido um pecado mortal e voltado a confessar-me no dia seguinte. Mandou que eu voltasse de alma limpa em 15 dias para ver se eu merecia ser absolvido.
Passei duas semanas de total terror. Tinha medo de atravessar a rua porque podia ser atropelado e ganhar uma viagem nonstop para o inferno. E o pior: era para toda a eternidade. Eternidade era o conceito mais difícil de entender. Quando professores de religião ameaçavam-nos com o fogo eterno, perguntávamos: São cem anos? São mil anos? Nossa imaginação adolescente não conseguia imaginar nenhum número maior do que mil.
O livro de religião tinha profusas ilustrações em cores de corpos (mas que deviam ser almas) queimando no inferno, todos nus, mas com chamas estrategicamente colocadas para esconder o que, na época, eram chamadas de partes pudendas. A localização das chamas só fazia excitar ainda mais a nossa curiosidade adolescente.
Quando a sociedade se seculariza, padres (ninguém sabe ainda o tamanho desse escândalo no mundo, nem o efeito que ele vai ter a longo prazo na Igreja) passam a poder ser acusados de pedofilia contra jovens meninos e meninas ao redor do mundo.
O crime é antigo, mas, durante séculos, o medo da danação eterna impedia os católicos de denunciar estes crimes. Sociedades teocráticas e a Igreja eram surdas. A culpa era da vítima.
A Igreja tenta escapar do problema. Em primeiro lugar, aposentando alguns padres acusados (que a hierarquia eclesiástica crê como culpados) e conseguindo-lhes alguma sinecura em outra paróquia na qual, preferencialmente (mas não necessariamente), estarão livres de tentação por falta de acesso aos objetos de sua concupiscência.
Nem sempre funciona. Em outros casos, a solução mais simples é uma contemporização: uma sinecura dentro da burocracia da Igreja que sirva como uma espécie de antessala do céu.
Livres de acesso aos seus objetos de pecado – que são pessoas que tem corpo, alma e direitos civis e políticos – pedófilos esperam confortavelmente a morte.
Uma espécie de INSS eclesiático-corrupto.
Em outros casos, hierarcas mais altos da Igreja não ganharam estas aposentadorias. Ganharam promoções laterais: foram nomeados para cargos burocráticos mais altos em territórios (preferencialmente no estado nacional vaticanense), onde estariam a salvo da mão da justiça civil de outros estados nacionais menos condescendentes.
Tratar crimonosos sexuais travestidos de agentes de Deus com essa leniência equivale a fechar os olhos para apederejamentos de mulheres adúlteras em algumas culturas islâmicas.
Está na moda falar em cidadania, mas não existe cidadania quando meninos e meninas são expostos a agressões sexuais por predadores que gozam de garantias e imunidades de um estado nacional que transfere hipotéticas punições para um mundo sobrenatural, na existência do qual boa parte dos cidadãos leigos não acredita.
É fundamental que criminosos travestidos de agentes divinos sejam punidos pelas leis criminais dos estados nacionais em que os crimes foram cometidos e que a Igreja indenize as vítimas.
Esse crime não pode ser imprescritível, e seus responsáveis não podem gozar do direito de asilo no estado nacional vaticanense, nem num remoto convento ou mosteiro.
Hierarcas eclesiásticos que assim agem, zombam dos princípios de sua igreja e das leis de Deus que juraram cumprir e divulgar.
As lágimas e as desculpas do papa não bastam.
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