terça-feira, 26 de agosto de 2008

(_Revista Olho) O CLARO E O ESCURO E O ESCURO DE NÓS MESMOS, por Karini Spuri*

Home Data de criação : 08/01/31 / Última atualização : 08/08/21 16:33 / 229 Artigos publicados O CLARO E O ESCURO E O ESCURO DE NÓS MESMOS . (_Revista OlhO.) escrito em terça 12 agosto 2008 15:01 dentro e fora do teatro, e o trabalho do iluminador., uma reflexão sobre a luz


Uma reflexão sobre a luz, dentro e fora do teatro, e o trabalho do iluminador.
Por Karine Spuri*



Só a arte é útil. Crenças, exércitos, impérios, atitudes – tudo isso passa. Só a arte fica, por isso só a arte vê-se, porque dura.
Fernando Pessoa (Obras Completas, 1914)


Não podemos falar de luz sem antes entender a mais primitiva delas: o fogo. A origem do fogo é muito difundida, tanto na ciência quanto na Mitologia, entre outras áreas de pesquisa, principalmente a Antropologia, pois a relação do homem e o fogo (ou com o fogo) é presente na história da humanidade desde os primórdios da civilização. Todos nós conhecemos ou já ouvimos falar a respeito de Prometeu, que na Mitologia Grega, roubou o fogo de Zeus e com isso foi condenado a viver acorrentado nos confins do mundo, onde sua pele é queimada pelo sol e seus órgãos (mais especificamente seu fígado) são devorados pelos abutres dia após dia sem que ele morra, uma vez que Prometeu é imortal, um semi-deus, e seu fígado é sempre regenerado.

O fogo nesse mito mantém seu caráter denotativo, enquanto fonte de energia, calor e alimentação, mas adquire também outros significados, principalmente enquanto símbolo de poder e conhecimento. Além desses aspectos, o fogo ainda integra a idéia de paixão (o “fogo nas entranhas” das personagens de Pedro Almodóvar é um exemplo bem claro disso), de sabedoria e fé (vemos isso nos atos bárbaros da Inquisição, o inferno de ser queimado vivo); o fogo enriquece o imaginário social: o fogo é conhecimento, é luz que irradia, a luz como fonte de vida, espiritualidade, conhecimento, fonte de uma inesgotável busca do ser humano através da existência, por algo que possa preencher os espaços em branco do consciente e inconsciente, da alma, corpo e espírito.

Entretanto essa busca pode significar um paradoxo: O homem buscando a luz, o homem tentando dominar a luz e paradoxalmente se afastando cada vez mais da mesma. Não podemos falar sobre a luz, sem abordar seu caráter simbólico, entretanto a luz também pode significar escuridão. É um paradoxo, assim como a frase de Vilém Flusser (que integra um ensaio de filosofia da técnica a propósito das imagens fotográficas) falando a propósito da escrita: “Ao inventar a escrita, o homem afastou-se ainda mais do mundo concreto quando, efetivamente, pretendia aproximar-se dele”, mas também é o princípio da oposição; uma vez que os olhos humanos não a suportam em excesso, um foco de luz muito intenso diretamente nos olhos é capaz de cegá-los momentaneamente. Os olhos humanos são muito sensíveis à luz e a luz em excesso ao invés de iluminar vai nos deixar na escuridão, pois quando olhamos um foco de luz, mesmo natural como o sol, e em seguida olhamos para um outro ponto, ainda estamos sob o efeito da luz intensa, o que nos atrapalha a visão, evitando que enxerguemos cores e formas nitidamente, é como se estivéssemos com uma névoa sobre os olhos. E muitas pessoas seguem toda sua vida com essa névoa, sem sequer perceber-se a si próprio.

Citei o mito grego, pois acredito que desde os gregos temos a luz enquanto símbolo de (do) conhecimento e as trevas (sombras) enquanto símbolo de ignorância, medo e tudo quanto é obscuro e desconhecido, e acredito que talvez seja por isso que tememos tanto a escuridão, pelo sentido que ela nos traz. A luz personifica tudo que é bom (no mundo e no ser humano) pois nos permite enxergar perfeitamente cores e linhas, formas, fisionomias, etc, enquanto a escuridão nos traz o medo e a insegurança, pois não permite enxergar nitidamente o que esta à nossa volta, dando brecha a imaginação (onde criamos nossos próprios monstros), pois tentamos ver com a mente aquilo que os olhos não conseguem distinguir, definir ou decodificar. Por isso, quando somos crianças tememos o escuro; é um acontecimento de caráter mitológico, pelo fato de que tudo que é ruim estar associado a escuridão, assim como prega o cristianismo, o catolicismo, etc: Deus enquanto fonte de luz, sabedoria, bondade e toda e qualquer personificação do mal, do que é feio, demoníaco, defeituoso, perverso, simbolizado pelas trevas, pela obscuridade.

Mas, no fundo, o que tememos mesmo é o desconhecido, misterioso, aquilo que não nos é revelado, seja pelo sentido da visão, seja pelo raciocínio lógico, ou espiritual. Vemos isso muito claramente nas Artes Plásticas, podendo citar como exemplo o trabalho de Caravaggio, onde as formas e volumes são absorvidos pela escuridão dando um caráter sombrio ao seu trabalho. Caravaggio pintou a maioria de suas telas para a Igreja Católica, principalmente na época da Contra-reforma, onde o intuito da Instituição Igreja era o de arrebatar fiéis que estavam sendo “levados” pelo Protestantismo; com essa qualidade peculiar de Caravaggio, suas telas não eram vistas com “bons olhos”, ou seja, muitas delas não foram aceitas, chegando a serem destruídas. Caravaggio pintava o sub-mundo, o mundo real, não o pomposo e supra-real da realidade que o Renascimento prezava, ele pintava a sua realidade onde as trevas eram a própria realidade; e com isso sua obra foi considerada perversa, defeituosa e bizarra.

Ainda falando a respeito das qualidades da luz; da mesma forma que existe a trindade, pai, filho e espírito santo, pode-se dizer de uma trindade no que se refere à luz, a luz que ilumina corpo, mente e espírito; e que não estão dissociados. Uma vez que alimentando corpo e mente alimenta-se o espírito, alimentando espírito, alimenta-se corpo e mente, e assim por diante, tudo entreligado. Isso pode ser encontrado em várias correntes filosóficas, em várias religiões, principalmente orientais. Mas a busca intensa pela luz pode acarretar numa total escuridão. Não devemos buscar aquilo pelo qual não estamos preparados para receber: o conhecimento também cega, talvez como forma de conseqüência. O conhecimento pode tornar o homem perverso e arrogante, ao invés de iluminá-lo pode escurecê-lo (ou cegá-lo). Mas isso é uma visão um tanto pessoal quanto à questão.

Falando sobre a luz de forma mais concreta, nós a temos como um dos recursos mais usados nas Artes Visuais: tanto nas Artes Plásticas, Cinema e Teatro, etc. O recurso luminoso muitas vezes é o que caracteriza a obra de arte enquanto expressão, principalmente nos casos do Impressionismo (nas Artes Plásticas) e no Teatro a partir das propostas de Appia e Craig. Com eles o espaço cênico ganha mais autonomia e conseqüentemente a luz ganha em significado, pois adquire um caráter poético e sensível (principalmente com Appia) e assume funções na articulação do espetáculo: dramatúrgica, semiológica e sensitiva.

“A luz, num espetáculo pode acompanhar os movimentos invisíveis do espírito ou da consciência. A luz tem essa faculdade que é ser muito presente e ao mesmo tempo impalpável. O estado de realidade da luz é muito difícil de definir, ela dá uma idéia de infinito – e faz aparecer e desaparecer. Então, há ali como que um ciclo de morte e ressurreição.”1. Tomo a fala de Claude Régy em uma entrevista cedida a Alcino Leite Neto, onde o mesmo comenta sobre sua montagem de "4.48 Psicose", peça de Sarah Kane, com Isabelle Huppert e a respeito da luz no espetáculo em questão, pois define bem o caráter imaterial da luz; a luz pode ser usada para delimitar o espaço da ação, para delinear formas, volumes e dar profundidade ao espaço cênico, trabalhando com focos de luz, fachos de luz e sombras; “situada” no espaço e tempo, ela age como enunciadora da encenação, dando o “tom” da cena, modalizando a ação cênica, modulando o espaço, controlando o ritmo do espetáculo e comunica juntamente com os outros elementos, ora relacionando-os ora isolando-os. E a maneira como o espectador irá receber as diferentes intencionalidades de luz e sombras, sensitivamente, é individual e relativamente de acordo com a “bagagem” de cada um, a crença e a leitura que cada um fizer dos signos e símbolos embutidos no conteúdo da obra artística.

Para se criar um jogo com luz e sombras, é necessário ter muita percepção dessas sensações, o conteúdo do imaginário-popular. No cinema, por exemplo, desde os filmes mais leves aos mais densos; cineastas “brincam” com a intencionalidade de luz e sombras a todo momento, criando ambiências capazes de levar o espectador a uma experiência sensível espaço-temporal, através da profundidade, cores, linhas, texturas, densidade, etc, o efeito a partir da forma, refletindo a luz em desenho, na criação de imagens. Percebemos que sempre que se pretende criar um clima misterioso, assustador, tem-se pouca luz, ou seja sombras e escuridão nos causando sensação de pânico, medo, apreensão, etc, e em cenas leves, felizes, tudo é muito iluminado para que haja uma certa sensação de bem-estar, para que possamos perceber tudo que acontece na cena, para que nada passe desapercebido pelos nossos olhos, a claridade está relacionada ao conhecimento, a tranqüilidade, paz, felicidade.

É uma forma óbvia de se trabalhar com a luz, mas que não deixa de ser coerente, uma vez que tudo isso está intrínseco na relação que o ser humano estabelece com o meio. Pois esse caráter simbólico da luz está presente na nossa vida sem que percebamos, está presente na casa, no trabalho, no vestuário, no nosso comportamento, etc. Ninguém estuda num quarto escuro, não vemos, por exemplo, um hospital com as paredes escuras, ou as roupas dos enfermeiros escuras, isso não está ligado a higiene apenas, mas ao simbolismo, pois todos nós temos no inconsciente que a morte vem vestida de preto segurando nas mãos uma foice, é um arquétipo; agora imagine um paciente entre a vida e a morte num hospital e que recebe a visita de uma enfermeira vestida toda de preto e portanto um instrumento qualquer nas mãos, o pobre coitado tem uma síncope; nós acendemos velas aos que morreram para que seus espíritos encontrem a luz e não fiquem perambulando e sofrendo; no reveillon vestimo-nos de branco desejando paz e equilíbrio para o próximo ano. Claro que os dois últimos exemplos são fenômenos culturais, mas não deixam de estar relacionados a esta questão simbólica. Muito é consciente, mas a grande parte disso tudo é inconsciente, recebemos isso ao longo dos anos, desde a nossa existência enquanto seres humanos, desde a descoberta do fogo.


Utilizamos desta simbologia para entender (ou tentar entender) o mundo exterior, pois afinal de contas, iluminar-se não é apenar encher-se de luz, mas encher-se de felicidade, de paz, de conhecimento, de entendimento. E isso se dá a partir daquilo que acreditamos, que temos como referência, daquilo que influencia nossa realidade e que está intimamente ligado ao inconsciente e espírito, a maneira como enxergamos o mundo a nossa volta, e conseqüentemente, qualquer estudo sobre a luminosidade deve partir desse pressuposto simbólico, acredito; sem esquecer também, que precisamos da escuridão da mesma forma que precisamos da luz, inclusive para termos uma boa noite de sono, pois nossos olhos precisam descansar; a escuridão nos traz à tona a imaginação, a criação, e precisamos ter a sensibilidade de enxergar o mundo a partir de outro ponto de vista, assim poderemos evitar o resigno da rotina, transgredir a realidade enquanto criadores e seres atuantes, uma vez que vivemos e trabalhamos com a Arte.

No escuro há luz e vice-versa. Em A Maçã no Escuro, de Clarice Lispector, temos essa ambígua trajetória entre o claro e o escuro, através da simbologia embutida no mergulho da personagem Martim em si mesmo: através da escuridão encontra-se a luz, pois é através do crime que ele procura olhar para dentro de si mesmo, tentando descobrir “ambiências” (sentimentos, emoções, pensamento e corpo) até então “selvagens”, desconhecidas, em relação à linguagem e ao silêncio, relacionados às suas mais íntimas e verdadeiras emoções, vivenciando uma transformação interna. O crime se transforma em salvação, revelando assim a luminosidade que existe no escuro, ou seja, mesmo em meio a uma total escuridão recheada de dor e desespero pode-se atingir uma vertigem em êxtase. Precisamos apenas, ser sensíveis à sua sombra, pois mesmo na escuridão podemos encontrar, criar ou recriar a luz.

“E esse modo instável de pegar no escuro uma maçã – sem que ela caia”. 2

Pegar a maçã no escuro, sem que ela caia, implicaria ser possuidor de um olhar mais aguçado, mais atento, um olhar interno, que mesmo no total escuro enxergue essa maçã. Um olhar que também seja capaz de iluminar, capaz de nos tirar da imobilidade frente ao mundo em que vivemos, propiciando subsídios para que possamos recriar esse mesmo mundo; partindo de nós mesmos, a partir da nossa própria escuridão. Não basta estarmos de fora e analisarmos friamente ou medrosamente o escuro, devemos penetrá-lo e arrancar dele a luz presente na mais ínfima de suas sombras.

A criação e a manipulação da luz, num espetáculo teatral, devem ser feitas a partir desse olhar, que enxerga além das sombras, além do real, através do imaginário, do sensível, da percepção interna, de si mesmo, do mundo e do outro. Uma vez que estamos lidando com as paixões humanas (pois o teatro tem esse caráter, de lidar, expor e transpor o que há de mais humano e primitivo no ser humano, o próprio ritual do espetáculo já caracteriza isso), devemos nos desmaterializar, nos livrarmos da técnica demasiada e buscar no estado natural da alma os movimentos do rito, que é o fazer teatral, buscar no mais primitivo (a própria respiração) subsídios que possam dar esse caráter humano ao maquinário da iluminação. Devemos procurar utilizar essas “máquinas” sem perder nosso olhar sensível, devemos emprestar-lhes a nossa sensibilidade, para que nosso trabalho não seja grosseiro e assim nos aproximar dos pintores, que segundo o diretor de fotografia Walter Carvalho, em entrevista a revista “Luz e Cena”, são os verdadeiros iluminadores. Devemos, com isso, buscar atingir o inconsciente, o espírito, o interno, aquilo que vive no silêncio de todas as coisas, o desconhecido, trazer à tona sensações e sentimentos contraditórios, pois o ser humano é contraditório; tornar palpável o impalpável, transformar, transmutar o estado inicial das coisas, tocar o interno para que assim possa ocorrer uma transformação externa.

Pode parecer, num primeiro momento, muita poesia e pouca objetividade, mas quem disse que o fazer teatral é objetivo? Pode ser, tecnicamente falando, mas o encaro como ritual, troca humana de fluídos e sensações, de sentimento, de corpo, mente e espírito; e nesse sentido acredito que a luz num espetáculo deve fluir de acordo com a presentificação dos corpos atuantes, de acordo com a respiração da cena e a pulsação do espaço em todas as suas formas; acredito também no poder (mesmo imaterial) da luz, no poder da projeção dos espectros humanos no espaço da memória e imaginação; a luz quando bem articulada no todo da encenação é capaz de ativar canais imagéticos-sensoriais (memória, imaginação, sensações corporais, etc.), a luz é o próprio convite para que o espectador entre no espetáculo, participe, atue.

É justamente por conseqüência desse caráter da luz, que considero o trabalho do iluminador muito delicado (como já foi dito), pois ele precisa ser possuidor de uma sensibilidade muito aguçada, uma vez que estará “manipulando” as sensações daqueles seres que recebem o convite e integram o rito teatral, estará encaminhando o espectador dentro do espetáculo, convidando-o a participar e ao mesmo tempo delimitando sua participação, enfim é um trabalho muito mais poético que técnico, muito mais sensitivo que intelectual; um trabalho por onde muitos transitam, mas poucos dominam, infelizmente.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Claude Régy - "4.48 Psicose", em entrevista para o site: http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2440,1.shl
2. LISPECTOR, Clarice. A MAÇÃ NO ESCURO. 8. ed. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1992: pág. 321.

BIBLIOGRAFIA

CRAIG, E. Gordon. DA ARTE DO TEATRO: trad. Redondo Júnior. Editora Arcádia: Lisboa.
FLUSSER, Vilem. FILOSOFIA DA CAIXA PRETA, Ensaios para uma futura filosofia da fotografia.UCITEC, São Paulo: 1985.
LISPECTOR, Clarice. A MAÇÃ NO ESCURO. 8. ed. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1992.
REVISTA LUZ E CENA: Entrevista de Walter Carvalho.
ROUBINI, Jean-Jacques. A LINGUAGEM DA ENCENAÇÃO TEATRAL: trad. Yan Michalvski. 2ª Ed. Jorge Zahar Editora. Rio de Janeiro: 1998.
MIDLEN, Beth.
VERNANT, J.P. & Vidal-Naquet, P. – Mito e Tragédia na Grécia Antiga, 1a. edição, 1991 vol. 2.

INTERNET
Artigo: O Fogo e as Chamas dos Mitos - Betty Mindlin
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142002000100009

* Karini Spuri é aluna de Artes Cênicas na Universidade Estadual de Londrina.

[Foto: Cena de "Alceste", direção de Robert Wilson: a luz como personagem]

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